Uma das mais nobres funções da arquitectura, e das artes que a rodeiam, é o de proporcionar a melhor qualidade de vida possível num espaço e, fundamentalmente, no espaço da habitação. Quando isso se alia a trabalhar no sentido social para contrariar precárias condições habitacionais num meio urbano, o prazer tenderá a ser maior, assim como o desafio.
Assim sendo, relembrar o carácter progressista que foi do Bairro Social do Monte Pedral, mais conhecido por Bairro d’O Comércio do Porto, é recordar boas práticas.
Hoje em dia, poucos adivinhariam que este pequeno e aprazível bairro, organizado em três quarteirões, foi projectado na passagem do século XIX para o século XX, englobado numa parceria público-privada entre a Câmara e o jornal O Comércio do Porto que decorreu entre 1899 e 1905, segundo o desenho do arquitecto José Marques da Silva (1869-1947). Trata-se de uma interessante experiência, desenvolvida para dar resposta aos anseios de uma população operária que sofria com a falta de condições na cidade.
A partir da segunda metade do século XIX, a população do Porto sofreu uma brusca expansão demográfica que acompanhava o forte avanço industrial. A dada altura dava trabalho a mais de um terço desta mesma população. Isto criou um problema habitacional grave, que resultou em habitações de construção rápida, poucos salubres, sem saneamento ou abastecimento de água e instalações sanitárias dignas, quando existiam. Uma tipologia que se desenvolveu muito por esta altura foram as ilhas, das quais restam, infelizmente, alguns exemplos na cidade. Nessas ilhas amontoaram-se milhares de famílias operárias que viviam num considerável estado de pobreza que muito contrastava com as habitações de classe média ou das mansões elegantes nos bairros mais considerados da cidade do Porto. Além dessas ilhas, a crescente população operária teve de residir em autênticas colmeias humanas nas antigas casas do Porto, essencialmente na zona da Sé e da Ribeira, cada vez mais degradadas e sobrelotadas, com miseráveis condições.
As condições degradantes das habitações dos operários, amontoados em “ilhas” e “colmeias”, foram responsáveis pelo foco de várias epidemias, sendo que o caso mais trágico foi a epidemia de peste bubónica que proliferou rapidamente neste tipo de condições e que em 1899 dizimou mais de 10% da população urbana. Só esta negligência teve impacto suficiente para que se desenvolvesse, pela primeira vez no Porto, o conceito de bairro operário e/ou de habitação social.
Por iniciativa dos proprietários d’O Comércio do Porto nasce assim este bairro bem planeado em terrenos municipais. É um bairro operário onde um grupo de quatro casas forma uma unidade que experimenta o sentido de habitação colectiva sem comprometer de forma desequilibrada a individualidade de cada morador.
O Bairro d’O Comércio do Porto acaba por ser um rico exercício que explora a iniciativa civil numa política social, apostando num modelo progressista que veio a inspirar outras construções reconhecidas pela simplicidade, eficiência, sentido de individualidade, higiene, salubridade e sobretudo dignidade a que um morador de baixos rendimentos deveria aspirar.
Em termos práticos, o bairro não foi grande o suficiente para contemplar um número considerável de famílias, ou veio sequer a albergar as mais necessitadas, pois as habitações foram posteriormente entregues a trabalhadores de rendimentos mais elevados. Apesar do objectivo inicial, não deixaremos de reconhecer neste bairro o precursor de outros projectos similares que acabaram por ser construídos no decorrer da primeira metade do século XX, contrariando a habitação de operários em situações tão degradantes.
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